Hoje, enquanto tratava da minha tarefa diária de manter limpa a área pertence às necessidades dos nossos gatos, começou a tocar, na minha cabeça, uma música da qual já não me lembrava há muito. Não a música inteira, mas dois versos que, por sua vez, me recordaram de uma sensação que tinha, muitas vezes, em criança e que hoje voltou, agora com outro sentido.
A música é “Greatest Love Of All” cantada por Whitney Houston e os dois versos a tocar, em constante looping cá dentro, são “I believe the children are our future” (eu acredito que as crianças são o nosso futuro) e “let the childrens laughter remind us of how we used to be” (permitam que os risos das crianças nos lembrem como fomos um dia). Fugindo ao significado original da música em si, pois não foi ela que me levou à reflexão, mas sim a sequência de versos desirmanada; relembrei a incompreensão que sentia, em criança, ao observar o olhar dos adultos sobre nós, cheio de saudosas lembranças e as palavras de : “esta é a melhor fase da tua vida, aproveita-a bem”, deixando sempre a ideia de que, ao crescer, a alegria e a leveza da vida estariam condenadas a desaparecer.
Lembro-me que continuei a ouvir as mesmas palavras durante a adolescência e como o desalento, a desesperança e o cansaço de quem mas dirigia, me formava um bolo no estômago como se fosse uma condenada lentamente caminhando em direcção ao meu degredo, o meu calvário, o resto da minha vida. Contribuindo para a minha confusão, observava esses mesmos adultos no contentamento efémero que sentiam por todas as coisas que podiam fazer e ter por serem adultos, senhores da sua vida, e que prezavam acima de tudo o resto. Ter a sua casa, o carro, a conta bancária, preocupações de adulto, iniciativas de adulto, conversas de adulto, discussões de adulto…No entanto, ao observarem as crianças nas suas brincadeiras criativas e despreocupadas, o coração enchia-se de uma saudade imensa de sentir novamente a mesma liberdade e magia que, um dia, sentiram e o peso escorria pelos seus ombros provocando os familiares suspiros e as tais palavras de aviso como se quisessem alertar a criança que haviam sido: “aproveita bem”.
Voltando aos versos da música e ao meu presente, devo confessar que, apesar de ter tido a minha quota-parte de tentativas de viver este “adulto”, continuo a não compreender esta perspectiva instalada, tantas vezes defendida, de que a nossa vida deve ser imutável. As decisões e escolhas que tomámos enquanto jovens constroem o resto dos anos da nossa vida e que uma vida sem planos, em linhas curvas ao invés de linha recta, é o pior dos nossos pesadelos! Não saber aos 30 o que quero estar a fazer aos 50 é uma aberração e sinal de alguém que não tem os pés na terra, é disperso e concerteza terá um futuro sem sucesso à sua frente! Obrigamos jovens de 15 anos a tomarem decisões profissionais e ainda os advertimos a escolherem bem, pois isso irá determinar os próximos anos da sua vida, a escolha de cursos para a universidade, os empregos que irão ter para ganhar o dinheiro para contrair empréstimos de 40 anos para casa, carro, família, conta-poupança, reforma…tudo isto mascarado de uma vida de sucesso material e social que, supostamente, traz felicidade e realização pessoal. E após anos de vivência desta “adultice”, encontramo-nos instalados numa vida sem cor, sem movimento e sem surpresas e, então, viramo-nos para as nossas crianças com esperança no seu potencial, com novo entusiasmo para ajudá-las a compreender a sua importância, uma vez que nós, adultos, já pouco iremos contribuir para promover mudanças. Vivemos adormecidos, desconectados do nosso verdadeiro potencial, da verdade do nosso poder e, nesta cegueira, carregamos os ombros das nossas crianças com responsabilidades que não são ainda suas. E, sinceramente, que discursor motivacional seremos nós para elas quando temos uma visão tão negra e limitada do que significa a vida aqui como adulto?
O mundo precisa de cada um de nós como somos, nem menos nem mais, nesta vida que é a nossa e que só acaba quando partimos dos nossos corpos. Que sentido faz querer ser igual ao outro? Qual a razão de sentir que ser adulto e ter responsabilidades é o mesmo que sentir-se cansado, aprisionado e ansioso? Que voz é essa, dentro de nós, que nos convence que devemos sentir-nos satisfeitos porque temos um emprego que paga bem, temos as nossas posses essenciais e ainda conseguimos comprar vestidos e gravatas, jantar à noite de vez em quando? Porque que é que insistimos em ouvir essa voz, confiar que iremos sentir-nos satisfeitos amanhã, quando hoje nos sentimos vazios e que estamos a perder tempo?
O nosso potencial verdadeiro está sempre presente, pacientemente à espera que acordemos para a realidade da sua existência e para a possibilidade de o vivermos em pleno…
Não significa que somos egoístas ou ingratos porque tomamos a consciência de que, apesar de parecer ser uma vida bem construída e recheada de coisas boas, para nós não serve. Não serve, porque não estamos felizes, não sorrimos porque uma joaninha posou na nossa mão, o nosso peito não se sente quente e cheio de gratidão pela vida e, porque, no fim do dia, chegar à cama é, na melhor das hipóteses, um alívio e não um descanso.
A criatividade efervescente das crianças não acaba porque crescemos… esmorece porque nos aprisionamos e mantemos a esperança de que, amanhã, ao mudarem as circunstâncias, vamos sentir-nos melhor. Se canalizarmos toda essa energia para, gradualmente, nos relembrarmos de quem somos, do que gostamos e que é possível, e desejável, viver o nosso potencial, a nossa criatividade vem sem esforço.
E acabou de me surgir um verso de outra música que me parece muito apropriada: “And when you smile, the world smiles with you” (e quanto tu sorris, o mundo sorri contigo).
Com Amor,
Sofia
Sem comentários:
Enviar um comentário